sábado, 30 de outubro de 2010

No tempo das matas, das roças, das boiadas e das tropas: o saci - II

Existem várias maneiras de apresentar o saci. Nesta coluna serão registradas as múltiplas versões desse mito que ocupa um significativo espaço no imenso patrimônio imaterial do folclore brasileiro. Na postagem de 20/10/10 vimos o Saci na versão de Câmara Cascudo, hoje temos a de Hugo de Carvalho Ramos e seu clássico Tropas e boiadas.

"Por aquele tempo, o Saci andava desesperado. Tinham-lhe surripiado a taça de mandinga. O moleque, extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás. Pai Zé, saindo um dia à cata dumas raízes de mandioca castela que sinhá dona lhe pedira, topou com ele nos grotões da roça. O preto, abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o negrinho que lhe fazia caretas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente.

- Vancê quer alguma coisa? Perguntou pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião do ioiô.

- Olha negro, respondeu o Saci, vancê gosta de Sá Quirina, aquela mulata de sustância; pois eu lhe dou a mandinga com que ela há de ficar enrabichada, se vancê me arranja a cabaça que perdi.

Pai Zé, louco de contentamento, prometeu. A cabaça, ele sabia-o, fora amoitada pelo Benedito Galego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices do moleque, a tinha roubado das grimpas do jatobá grande, lá nas roças ao ribeirão. Pai Zé fora um dos que tinham aconselhado, para obstar que o Saci como era seu costume quando incomodado, tornasse a levantar as árvores da derrubada que o Benedito fizera nessas terras. Arrastando as alpercatas de couro cru pelas terras de Sô Feitor, pai Zé capengava satisfeito e inchado com a promessa do Saci. Desde Santo Antônio que ele rondava Sá Quirina, procurando sempre ocasião de lhe mostrar que, apesar dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho de menos e falta de dente na boca, não era negro para se desprezar assim por um canto, não, que sustância ainda ele tinha no peito para aguentar com a mulata e mais a trouxa de Sá Quitéria, sua mulher, se ele tinha! Mas a cafusa era dura da gente convencer. Toda a eloquência que ele penosamente engendrara em seu bestunto de africano e que lhe tinha despejado pela festa de S. Pedro, não teve outro resultado senão a fuga da roxa quando o encontrava.

- Mas agora, gaguejava o preto, eu lhe amostro, que o Saci é mesmo bicho bom pra deitar um feitiço. Com a rica dádiva dum quartilho de cachaça e meia mão do seu fumo pixuá, pai Zé alcançou do Galego a cabaça desejada. Sá Quitéria, porém, não via com bons olhos o afã de seu velho pela posse da milonga. E ela também sabia deitar e tirar quebranto, se sabia! Perguntassem à bruxa da Nhá Benta, que desde vésperas de Reis estava entrevada na trempe do jirau; e não era o zarolho e cambaio do seu homem que a enganasse. Por isso, a velha ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber de seu intento. Lá ia pai Zé, arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de Sô Feitor, à entrevista do Saci. Atrás dele, sorrateira, lá ia também Sá Quitéria. O negro chegou aos grotões e chamou pelo Saci, que de pronto apareceu.

- Toma lá a cabaça de mandinga, seu Saci, e dá-me o feitiço pra Sá Quirina. O moleque desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e, entregando o resto a pai Zé, disse:

- Dá-lhe a cheirar essa pitada, que a crioula é sua escrava. E desapareceu, fungando, pulando no seu único pé, nos grotões e covoadas da roça.

- Ah negro velho dos infernos que conheci a tua tramóia, gritou Sá Quitéria furiosa, saindo do bamburral e segurando-o pelo papo. E, na luta do casal, lá se foi o feitiço que o pobre pai Zé adquirira com o sacrifício dum quartilho de cachaça e a meia mão do seu bom fumo pixuá.


Desde então, nunca mais houve paz no casal, que se devorava às pancadas; e pai Zé arrenegava sem descanso o maldito que introduzira a discórdia no seu rancho.

- Porque, Ioiô, concluiu preto velho que me contava esta história - a todo que viu e falou com o Saci, acontece sempre uma desgraça. Goiás, 1910" (Hugo de Carvalho Ramos. Tropas e boiadas. Belo Horizonte. Itatiaia, 1986)




Comitiva Brasil Poeira
Preservando a cultura do homem do campo

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